miércoles, 30 de enero de 2008
Gamão com as Mulheres de Mantilha
"Na chácara de Jerônimo Lírio também se conversava sobre as novidades do dia.
O velho negociante português Antônio Pires, amigo de Jerônimo desde quarenta anos e padrinho de batismo de Inês, tinha ido passar o dia na chácara da Gamboa, e dera conta do que se passara na cidade.
Estavam na sala a sra. Inês e suas duas filhas, que alegremente festejavam os presentes de doces e frutas que lhes trouxera o velho amigo de seu pai, e especialmente a bela afilhada, que recebera, além do mais uma linda boneca, não cabia em si de contente.
— Imprudências loucas, Antônio! Não nos governam bem, mas a falta de respeito ao governo é pior, dissera Jerônimo.
Antônio Pires olhou em torno da sala, e não vendo senão o amigo, a comadre e as meninas, respondeu, fazendo com o braço um movimento:
— Leve o demo o governo que desgoverna, Jerônimo.
— Compadre! disse a sra. Inês.
— Arrancam-nos dinheiro e propriedades, prendem nossos caixeiros e nossos escravos, desenfreiam e protegem a devassidão... pois em tal caso venha ao menos a vingança do pasquim!
— Antônio, tu és um velho criança; vamos jogar o gamão.
— Cala-te aí, que pensas como eu penso, e como todos os homens de siso e de honra.
— Anda jogar o gamão ou eu mando as meninas molharem-te a cabeleira e os babados da camisa.
— Elas não ousariam fazê-lo, compadre, observou Inês.
— E que o fizessem! O dia é de folguedo e eu não sou carranca rabugento, como seu marido, comadre.
E voltando-se para as duas meninas, perguntou:
— Sinhazinha, tens limões-de-cheiro?
— Não, meu padrinho, respondeu Inês.
— E tu, nhanhã?
— Também não.
O velho tirou da bolsa duas moedas de ouro, e dando uma a cada menina, disse-lhes:
— Hoje governo eu aqui, e muito melhor do que se governa lá fora; enquanto vou ensinar o gamão a vosso pai mandem vocês comprar limões-de-cheiro nas casas em que os vendem, fazendo traze-los em caixas fechadas, para não serem quebrados pelos rondantes do vice-rei, e molhem-se uma a outra, e molhem pai e mãe, e a mim também, com a condição de serem e de se mostrarem bem contentes e bem felizes; não?!
As meninas, coitadinhas, hesitavam, olhando para o severo pai.
— Este velho criança tem direitos de padrinho, que é quase pai; ide brincar, e obedecei-lhe; pois que ele manda; nada, porém, de doidices... ide brincar.
As meninas saíram correndo.
— Olhem como elas vão! exclamou Antônio.
— Inês, disse Jerônimo, manda-nos vir o gamão.
A sra. Inês saiu da sala e em breve chegou o tabuleiro do gamão, que os dois velhos amigos descansaram sobre os joelhos; armadas, porém, as pedras, e tendo Antônio lançado o seu dado, Jerônimo, em vez de imitá-lo, falou tristemente:
— Dizias bem: o governo da colônia está confiado a um cego, que não quer ver e que tomou por condutor o vício desenfreado.
— Cada dia, novas extorsões...
— É o menos: o mais é o exemplo da corrução que parte dos que governam, e que empesta a sociedade; o mais é a impunidade do sedutor indigno que ameaça as famílias!...
O rosto de Jerônimo tornara-se rubro de cólera.
— É assim; mas...
— Antônio, eu a ninguém o disse ainda, nem mesmo à tua comadre; direi, porém, a ti, e a ti somente; pois que tens direito de sabê-lo, e és homem capaz de compreender-me...
— Que há então?...
— O oficial-de-sala ousou levantar seus olhos corrutores até à tua inocente afilhada!...
— Estás certo disso?
Jerônimo continuou com voz trêmula e abalada:
— Quando quisesse duvidar, não podia...
— Por quê?...
— Porque cartas anônimas me denunciam todos os passos e todas as maquinações de Alexandre Cardoso para aproximar-se de minha filha, relacionando-se comigo, e tudo se verifica de quanto me previnem; portanto, já anda por ai o nome de Inês exposto às línguas venenosas desses devassos da companhia do oficial-de-sala!
— Jerônimo, talvez estejas exagerando: és rico e pode bem ser que Alexandre Cardoso calcule com um casamento...
— Casamento! Darias a mão de tua afilhada a esse homem?
— Nunca; mas, semelhante ambição está longe de ser uma ofensa, como seria a infame tentativa de sedução.
— E quem assegura que o não é?...
— Eu por certo que não.
— Também minha resolução está tomada, e eu precisava comunicá-la a ti.
— Qual é?
— Minha família continuará a negar-se a Alexandre Cardoso.
— Muito bem.
— E se o homem fatal por qualquer modo tentar seduzir Inês, ou der motivo a que seu nome e a sua reputação sofram ainda a mais leve e a mais injusta suspeita.
— Que farás?...
Jerônimo levantou-se e indo abrir as pesadas portas de um pequeno armário cavado na parede da sala, tirou dele um papel dobrado e lacrado triplicadamente duas ricas pistolas.
— Estes objetos explicam o que hei de fazer: ficas sabendo onde se há de achar o meu testamento e estás vendo as pistolas, com que hei de na rua, de dia, e à face de todos matar Alexandre Cardoso.
Antônio fez um movimento de aprovação; mas logo depois disse:
— Pobre velho Jerônimo! se errasses o primeiro tiro, não te dariam tempo de usar da segunda pistola.
— Antônio!
— Eu tenho melhor idéia.
Qual?...
— Que magníficas pistolas! Aqui na colônia não se encontram iguais! Jerônimo, dá-me uma delas... será aquela de que não terias tempo de servir-te.
Jerônimo, banhado o rosto em lágrimas, abraçou-se com o amigo, exclamando:
— Não! Seria demais!
— Que demais?... tornou Antônio com gravidade; tu és pai, e por isso tens o direito de ir adiante; mas eu sou amigo e padrinho e tenho o direito de ir depois. Em dois velhos que atiram de pistola, quando um erra, o outro pode acertar.
Jerônimo estendeu o braço para dar uma das pistolas a Antônio, que não a quis receber, dizendo a sorrir:
— Tenho lá em casa também duas da mesma fábrica: o que eu queria, era assegurar-te que na hipótese que imaginaste, se errares o tiro, eu tratarei de apontar mais certeiro. Vamos jogar o gamão.
Hoje em dia dois velhos que assim falassem, fariam rir pelas bravatas ridículas, a que ninguém daria grande importância; naqueles tempos havia um ditado que definia certos homens; o ditado rude, como rude era o povo, era este: "pé de boi português velho" e em Jerônimo e Antônio se encontravam dois pés de boi portugueses velhos que fariam o que diziam, dois homens de bem às direitas, mas teimosos, emperrados, indomáveis, que tinham no cumprimento da palavra o fanatismo da religião.
Os últimos representantes dessa geração de heróis de firmeza obstinada, antíteses da egoísta inconstância e interesseiro aviltamento de notabilidades passivas, foram aqueles paulistas que tomavam por divisa vaidosa, ao menos porém não suspeita de indignidade, o famoso princípio: "antes quebrar, que torcer".
As Mulheres de Mantilha (1870-71), Capítulo XIV, por Joaquim Manuel de Macedo (1839 - 1908)
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